A morte da clínica: o que se esperaria de uma consulta médica se a abordagem clínica estivesse viva
ESTUDO DE CASO – Paciente com queixa de dor no aparelho digestivo diante do fiasco da medicina robotizada
[Imagem: vpalatako.ru]
[O artigo abaixo consta do livro A morte da clínica [A medicina dos sintomas], publicado em 2023, em Brasília, pela Centelha Cultural]
[Este artigo tb já foi publicado no nosso antigo blog do substack ao qual, recentemente,me foi vetado o acesso para postar novas publicações. Dessa forma e para que possa ser conhecido pelos leitores deste novo blog -intitulado outramedicina2024.substack.com - , fazemos aqui a republicação do artigo]
Um colega já de certa idade procurou uma gastrenterologista aqui em Brasília, meses atrás, com queixa de dor no abdome superior, na altura do fígado,
A consulta foi desapontadora. Sim, sabemos que hoje é comum, mas o fato não fica menos incômodo apenas porque passou a ser muito frequente: a consulta não durou mais do que dez minutos.
Isso já significa muito menos tempo do que aquele que foi gasto na espera, na antessala de uma grande clinica na Asa Sul.
O paciente já chegou informando à colega gastrenterologista que desejava um exame clínico para avaliar sua dor crônica, esclarecer o diagnóstico, tomar providências. Precisava ser examinado por uma segunda pessoa, um colega.
Informou, por outro lado, que era portador de uma sequela de dengue grave [na qual a carga viral provocou sangramento, subsequente hemólise, que disparou um processo de pâncreas cronicamente inflamado]; ele trazia essa pancreatite crônica que – na condição de doença progressiva – constituía uma ameaça permanente de agravamento e eventual necessidade de atendimento de emergência.
Esclareceu que a queixa atual, que o trouxe à consulta era, no entanto, de uma dor inusitada, surgida há dias atrás e que precisava ser avaliada. Ele queria chegar a um entendimento-diagnóstico do que poderia ser essa sua dor crônica localizada no quadrante lateral direito, abaixo do rebordo da costela.
Com zero empatia – muito comum nesses dias na relação médico-paciente como ela é – a doutora basicamente não fez perguntas relevantes e, em termos de exame físico, apenas passou o estetoscópio sobre a própria blusa do paciente, bem superficialmente, para, por fim, nada ter a acrescentar.
Sua anamnese e semiologia em relação à queixa simplesmente não ocorreram.
A jovem profissional apenas concordou com a opinião dele de que a pancreatite crônica é uma doença de mau prognóstico, além de progressiva, e que não havia o que fazer a não ser esperar o desenvolvimento do problema. Até o problema se tornar uma questão hospitalar, de internação.
Quanto à dor atual, ela apenas se resumiu a entregar um pedido de uma ecografia de abdome superior – sugerida pelo próprio paciente – e deu a consulta por encerrada.
Tudo certoɁ
Tudo errado. Além de ter sido uma consulta paga [hoje médicos cobram consulta de colegas; nem sempre foi assim], no real, a doutora parecia estar ansiosa por se ver livre do paciente e o atendimento não foi além daqueles minutinhos, que por assim dizer e sem grande esforço, até poderiam ser classificados como inúteis.
Mas, ao mesmo tempo, muito reveladores. Reveladores de que semiologia, anamnese, exame físico e exames complementares não são algo que o doutor moderno se sinta obrigado a fazer [esse tipo de ocorrência é muito comum atualmente].
Pelo contrário. Há muito tempo, ele já naturalizou a ideia de que consulta médica é esse tipo de procedimento fast food.
Robótica, a doutora se levantou em seguida e prontamente conduziu o paciente até a porta.
Agora suponhamos que a doutora rezasse na cartilha clássica de que a clínica é soberana. De que o exame clínico é senhor e soberano na consulta médica da doença crônico-degenerativa.
O cenário teria que ser outro.
Em primeiro lugar, empatia.
Elementar: ali estava um ser humano em sofrimento e que se deslocou uma boa distância – nas metrópoles nada é perto – para colocar sua vida e sua dor diante do especialista, do doutor [colega, no caso] que “estudou” gastrenterologia, área da sua doença, e que vai ajudá-lo, vai tratar de colocar-se no lugar do paciente, para lidar com sua dor. Portanto, ao menos por obséquio, por misericórdia, seria mais que desejável uma empatia básica.
Se esta não acontecer [médico também é humano e pode simplesmente estar em um dia ruim], o que pode ser compreensível, mas que pelo menos a consulta seja objetiva, produtiva, que a atenção e o exame clínico estejam presentes.
Que seja uma consulta ao menos profissional, isto é, com clínica.
Vamos imaginar um pouco como seria aquela consulta, em um mundo onde a clínica reinasse.
Vejamos.
Havia o relato de dor no lado direito do abdome superior, portanto, caberia ao doutor, percebendo que o sintoma deve vir bem provavelmente do aparelho digestivo [fígado? vias biliares? pâncreas?], começar por uma anamnese dirigida ao aparelho digestivo, antecedida, é claro, de um interrogatório geral sobre o paciente e sua história natural.
Sim, a doutora já tinha sido informada da existência de um processo crônico, a pancreatite. Mas, ao mesmo tempo, era evidente que ali, na queixa atual do paciente, havia uma dor não muito típica de pancreatite e que era um evento ou um episódio que deveria ser esclarecido clinicamente.
O passo obrigatório esperado era o de que o profissional procedesse a uma coleta da história da doença atual do paciente para, pouco a pouco, começar a esboçar uma hipótese-diagnóstico – ou várias - dando sequência, ato contínuo, ao exame físico.
Um trabalho de detetive, sim, procurando indícios, primeiro na história, colhida com rigor, depois na inspeção e palpação do paciente singular, para tentar entender a doença e chegar ao desafiante objetivo de elaboração das suas hipóteses-diagnóstico; que guiariam pedido de exames, se necessários.
Seja como for, em uma consulta pautada pela clínica, o roteiro passaria pelas seguintes etapas necessárias: anamnese [histórico da doença atual], exame físico com inspeção, percussão, ausculta, palpação superficial e profunda.
O paciente deveria ser solicitado a deitar na maca [relaxando automaticamente a musculatura abdominal para o exame físico]; e uma vez ele deitado - sem a blusa ao menos – viria o processo de inspeção e palpação do abdome, depois da pergunta sobre em que ponto do abdome a dor se concentra mais [este ponto seria deixado para a parte final do exame]. Antes, porém, seria tirada a temperatura do paciente em repouso [boca], pulso, poderia ser medido o reflexo de Aquiles, pensando em algum hipotireoidismo não diagnosticado.
E, considerando que o problema parecia ser originário do aparelho digestivo, antes de proceder ao exame físico, faria determinadas perguntas a respeito.
A topografia da dor iria ficar mais clara na palpação. Pela anamnese prévia, o doutor já estava sabendo seu ritmo e periodicidade; o padrão; os fatores que melhoram, pioram; algum fator desencadeante, também os sinais e sintomas associados. Na anamnese do aparelho digestivo, muitas questões teriam sido exploradas: vômitos, tipos e frequência de refeições, uso de drogas que têm a ver com o aparelho digestivo [anticolinérgicas, antiácidos etc.], apetite, ganho e perda de peso, evacuações. E assim por diante.
O histórico de problemas do aparelho digestivo, de eventual cálculo na vesícula, cirurgias afins, trânsito e ritmo intestinal, hábitos alimentares tudo já teria sido anotado.
Considerando, sempre, que a alimentação daquele paciente – e estilo de vida - seria um ponto chave para muito provavelmente entender a construção da doença.
Naturalmente, antes de tudo – na história geral do paciente - seriam indagações importantes todas aquelas que apontassem para o estado clínico básico do paciente, hábitos, vício do álcool, algum resultado de exame anterior que fosse útil, grau de estresse do paciente, seu trabalho e o que ele esperava esclarecer na consulta e assim por diante.
Depois daquela anamnese do aparelho em pauta, viria o exame físico, desta vez orientado, com anotações e tudo.
Como fase inicial do exame físico, a inspeção do corpo, da pele, do abdome, poderia mostrar elementos muito úteis para fechar um diagnóstico.
Inspecionando os olhos se pode, eventualmente, encontrar a clássica icterícia nos olhos, sugerindo doença hepato-biliar; sinais marrom-esverdeados na periferia da córnea podem indicar uma doença de acúmulo de cobre no organismo, que pode eventualmente se manifestar como dor abdominal.
Unhas dos dedos em baquetas e leito ungueal opaco podem sugerir problema hepático e também doença intestinal inflamatória. Equimoses grandes em braços podem indicar problema de coagulação derivado do fígado. O estado da língua, aranhas vasculares no pescoço, ginecomastia em homens, todos podem apontar, eventualmente, para problemas digestivos.
Esses e outros elementos que podem ser achados da inspeção falam sobre o aparelho digestivo, sobre eventuais problemas vinculados àquela dor referida pelo paciente.
Por sua vez, o exame físico seria levado a cabo através de uma palpação abdominal inicialmente superficial e, por último, palpação profunda, acurada, lenta, concluindo com o exame detido do da região da dor.
Seriam procuradas eventuais massas tumorais, pontos dolorosos; tamanho e borda do fígado seriam atentamente examinados [uma dor na região hepática pode indicar, eventualmente um abscesso, uma neoplasia de fígado].
Por sua vez, palpando-se aquela região sobre a vesícula, sinal de Murphy, com a mão do examinador na margem costal direita, se pode detectar uma vesícula aumentada, eventualmente alguma massa.
O profissional já procedeu ao exame físico, recolheu a história da doença atual, fez perguntas básicas de semiologia geral ao paciente. Instruído por todos esses dados, irá agora raciocinar sobre quais hipóteses diagnóstico poderão explicar aquela dor no hipocôndrio direito e quais devem ser excluídas como improváveis. Fará mais algumas perguntas.
Com que tipo de dor abdominal se está lidandoɁ
Feitas as análises iniciais, prospectivas, o doutor sabe que dores abdominais assemelhadas àquela específica do paciente podem aparecer em determinados quadros clínicos crônicos do aparelho digestivo provenientes de locais como fígado e vias biliares, estômago, pâncreas, parte superior do intestino.
Aquela dor pode apontar para afecções tipo úlcera péptica, problemas na esfera das vias biliares, também hepatite e abscesso hepático, câncer de estômago-fígado-pâncreas e, claro, pancreatite crônica.
O profissional teria que solicitar alguns exames laboratoriais [sangue] para confirmar dados, também uma ultrassonografia da região, mas, após o exame, já conta com elementos para excluir algumas hipóteses de saída.
Uma suspeita de processo inflamatório crônico ou moderado no fígado, de hepatite [viral ou não], como causa daquela dor, seria desconsiderada de antemão, a partir do histórico e da abordagem inicial do paciente. Ainda em termos de fígado, resta a hipótese de um abscesso hepático [presença de pus em alguma área do fígado] que pode ser de origem bacteriana ou amebiana. Daria aquele tipo de dor, eventualmente. Mas essa hipótese está excluída pelo exame físico [palpação]; a ecografia que será solicitada, eventualmente, evidenciaria o abscesso [além de um marcador sanguíneo, se estiver alterado, o VHS].
Ao mesmo tempo, nem o histórico, tampouco o exame físico permitem imaginar, no momento, a presença de câncer de fígado, de vias biliares, pâncreas ou estômago.
O que, no entanto, ainda não pode ser excluído para entender aquela dor crônicaɁ
Justamente, permanecem como hipóteses-diagnóstico a serem investigadas: úlcera péptica, doenças de vias biliares e/ou vesícula biliar e, novamente, a pancreatite crônica.
Vejamos cada caso.
Sem sinais evidentes de úlcera péptica no momento, o doutor fará outro tipo de interrogatório, especificamente focado no estômago, mas o estômago será hipótese a ser acompanhada em futuras consultas.
E se a dor for de origem biliarɁ No caso das vias biliares e da vesícula, três hipóteses despontariam para a dor: colangite [inflamação de ductos biliares], colecistite [inflamação da vesícula], cálculo [colelitíase]. São doenças relacionadas entre si e mais frequentes em adultos e idosos.
Por conta do risco de quadro agudo e óbito nos três casos, o doutor assumiria o acompanhamento e esclarecimento do eventual diagnóstico das vias biliares como questão séria. O exame físico e alguns exames laboratoriais mais ecografia seriam ferramentas.
Por fim, vamos lembrar que o paciente em foco, com sua dor no rebordo costal direito, é o mesmo que já traz um diagnóstico de pancreatite crônica. Sua tendência mais provável, no tempo, é a de evolução a quadro agudo, com risco de UTI e óbito; além do risco aumentado de câncer. Caberia ao doutor se dispor – como especialista - a acompanhar o caso muito atentamente.
Jamais deixá-lo simplesmente ao léu. Se o ponto de chegada dessa doença é o gastrenterologista, este deveria se propor a assumir o caso. Não foi o que se deu.
A especialista sequer advertiu que o pâncreas irá se deteriorando progressivamente e que enzimas não servem para acompanhamento da pancreatite. Nem advertiu que o ultrassom comum traz poucos dados, mas que existe um ultrassom de ponta, com o tríplice método de elastografia, doppler e ultrassom, que permite, este sim, acompanhar no fino, no detalhe, a evolução da doença.
A consulta clínica de acompanhamento seria marcada para em seguida da ecografia de abdome superior e os testes de sangue [que teriam que avaliar a produção de bile; bilirrubina], de enzimas digestivas de pâncreas e fígado, hemoglobina glicada, VHS, sorologia para hepatite, além de outros exames estratégicos vinculados à saúde digestiva como ferro sérico [que fala da produção ácida do estômago], marcadores tireoidianos, vitamina D, também testosterona, PTH, homocisteína, ferritina e alguns outros.
Naquele momento, mais fechado o campo da hipótese-diagnóstico, reavaliado clinicamente o paciente, conselhos alimentares seriam oferecidos – pensando no aparelho digestivo – e um alerta: se a ecografia feita foi a comum, ela pode dar normal e, ainda assim, haver presença de cálculo biliar, já que se trata de uma ecografia de menor acuidade e a maioria daqueles cálculos não aparece nos exames, por serem feitos de colesterol.
Todo esse tipo de informação deve ser oferecido ao paciente, em linguagem inteligível.
Por sua vez, o acompanhamento [follow up] permitirá avaliar a evolução da doença, prevenir seu agravamento, se possível.
Por outro lado, o médico terá o cuidado – pensando na saúde do paciente – de evitar solicitar exames invasivos ou tóxicos [há trabalhos mostrando que uma endoscopia pode trazer efeitos colaterais inaceitáveis e que tomografias possuem potencial cancerígeno; ver rodapé a respeito]. Caso o doutor venha a solicitar algum exame desse tipo, que seja com consentimento informado ao paciente, após este ler documento escrito e assinado pelo doutor onde fique expressa a advertência sobre eventuais riscos ou efeitos colaterais.
Eis o chamado consentimento informado em plena ação, na vida real. O que é raro.
Concluindo.
Essa análise, ainda que bem parcial, do cenário de uma consulta onde a clínica estivesse de fato presente, tem vários objetivos.
Um deles é o de chamar a atenção para o seguinte: se a consulta é tão superficial como costuma ser, tão descuidada com inspeção, palpação e nem falar uma detida história clínica do paciente ou da doença atual, corre-se o risco alto de deixar escapar detalhes que esclareceriam o diagnóstico e até poderiam detectar outra afecção em curso. Ou coisa pior.
Como se sabe, o corpo é totalmente interligado. O problema – ou o grande problema - pode estar em um detalhe que, clinicamente, se deixou escapar.
E, por sua vez, a ideia de prevenção, de tratamento precoce está – de várias formas – fundada na clínica, na anamnese e no exame físico. Baseada na detecção de sinais e sintomas antes que eles evoluam para quadros mais graves.
Por isso, a morte da clínica – que acabemos de evidenciar nesse estudo de caso - aponta para a morte da consulta médica ou, de alguma forma sinaliza para o seu esvaziamento e embotamento.
E evidencia o fiasco da relação médico paciente. O problema é que, inevitavelmente, vai tomando forma, em seu lugar, outra medicina, agora fundada no protocolo robotizado, nos laudos de imagens invasivas, coisas que um software online pode executar facilmente e provavelmente com vantagens na esfera do enriquecimento do fundo de investimentos que lucra com a empresa médico-hospitalar.
Pior, ao mesmo tempo em que a consulta clínica vai se tornando uma fast-consulta, nessa mesma proporção fica mais distante qualquer possibilidade de algum poder de decisão de parte do paciente, qualquer chance de tomada de consciência corporal, ou da prática do consentimento informado [em relação a exames tóxico-invasivos e medicamentos idem], da prevenção e coisas no estilo, que dizem respeito ao corpo e à autonomia propriamente dita do paciente.
E, por outro lado, o exame físico e seus achados, a reflexão clínica do doutor sobre o corpo do paciente, tudo isso deveria ser alvo de conversa com o chamado enfermo, em modo paciente e didático. O profissional deve ouvir perguntas, reflexões e sugestões do paciente, este deve opinar e, sim, pode discordar do doutor.
Sem o contraditório não se vai a lugar algum a não ser rumo à autocracia e à soberba, ambos causadores de enorme sofrimento, especialmente quando vindos daquele que deveria zelar pela sua saúde e segurança.
G Dantas [Publicado originalmente no livro A morte da clínica, lançamento em outubro 2023 e, antes, em antigo blog em Brasília, em 3-10-23]
As informações aqui presentes não pretendem servir para uso diagnóstico, prescrição médica, tratamento, prevenção ou mitigação de qualquer doença humana. Não pretendem substituir a consulta ao profissional médico ou servir como recomendação para qualquer plano de tratamento. Trata-se de informações com fins estritamente educativos. Nenhuma das notas aqui presentes, neste blog, conseguirá atingir o contexto específico do paciente singular, nem doses, modo de usar etc. Este trabalho compete ao paciente com seu médico. Isso significa que nenhuma dessas notas - necessariamente parciais - substitui essa relação.
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